[exposição individual]

Chmac Chuá


São Paulo, 2025 | Galeria Aura

Texto curatorial por Thiago Honório

Chamc Chuá Algumas notas sobre a prática artística de Luiza Gottschalk

Não se trata de usar aquelas imagens, falas, como elas são, de escrevê-las ou citá-las. Preciso “aluciná-las”, repisá-las [grifo meu] (como explico no começo de O acontecimento, que é o texto em que fui mais fundo em meu trabalho de escrita), e depois me esforço para “produzir” –– e não contar –– a sensação que a cena, o detalhe, a frase me transmitem, por meio da narrativa ou da descrição da cena, do detalhe. Preciso da sensação (ou da lembrança da sensação), preciso desse momento em que, desprovida de tudo, nua, a sensação surge.

Indagada a discorrer sobre seu processo de escrita, seus recursos e metodologias de trabalho, Annie Ernaux (1940), em A escrita como faca e outros textos, nos fala da necessidade – e precisão, no sentido daquilo que é estritamente preciso –, da sensação, “desse momento em que, desprovida de tudo, nua, a sensação surge”². As pinturas realizadas por Luiza Gottschalk (1984) no verão de 2025 se valem da mesma necessidade, da mesma aposta ética, da mesma motivação, por assim dizer, do mesmo éthos, do mesmo princípio: a necessidade da sensação nua.

O conjunto de trabalhos, ou, nos termos da artista, “a família” de pinturas recentemente produzida por Luiza Gottschalk, arregimenta-se a partir de um campo de forças pulsionais irradiadas por uma espécie de núcleo em expansão que – sustentado no gozo, naquilo que irrompe, que estoura como erupção cutânea, agitação interna e movimentação de suas “placas tectônicas” – propagaopunhado de acontecimentos presentificados em suas superfícies coloridas. Não há economia; bem ao contrário, nessas pinturas, o excesso³, a desmesura e o transbordamento⁴ revelam-se generosamente a partir de cores vibrantes, ora estridentes, ora cintilantes, de variados estados de ânimo, pontuados de movimentos caligráficos pintados com gizes e bastões de óleo, assim como de pinceladas largas e expansivas – como se não coubessem no corpo das próprias pinturas – e de um vocabulário de gestos, texturas e manchas impavidamente gastos na largada.

Nessas pinturas, por um lado, não há nada a ser declarado, nada a ser decifrado, nenhuma figuração indicada ou dada a priori, como âncora ou elemento a se agarrar, assegurar; por outro lado, também seria impreciso e equivocado localizar essa família na chave de uma abstração mais lírica – da pintura abstrata –de antemão. Daí advêm a aposta franca na lembrança da sensação, ou melhor, na sensação nua, e a escolha de uma onomatopeia⁵ como título da mostra individual que apresenta tal família.

Nesses termos, o que Luiza Gottschalk faz é uma“pintura-acontecimento”, como diz a própria artista, de algum modo, com os chifres agarrados no presente, aqui e agora, no calor da hora, guiada pelo desejo daquilo que Gilles Deleuze(1925-1995), ao analisar a pintura de Francis Bacon (1909-1992), chama de “pintar as forças”⁶.

Ao tornar visíveis, no campo pictórico, forças invisíveis⁷, eis que estas pinturas produzidas por Luiza Gottschalk apresentam-se abundantes, dispostas e grandiloquentes, revelam-se como espécies de pletoras, a partir de um investimento libidinal que lhes é muito caro e precioso, e do qual não abrem mão. Lançam-se, destemidas, ao espaço e à profusão de acontecimentos e elementos que envolvem tal investimento e que também as envolvem, ao mesmo tempo que brotam desse espaço: com os véus – tecidos em voil embebidos em tinta durante o processo de produção dessas pinturas, arranjados em cabideiros-lanças na casa-ateliê da artista, verdadeiras placas-mães, matrizes-pincéis utilizadas por Gottschalk na realização destas pinturas; o tapete estampado, sujo e lambuzado com as marcas e os vestígios de tinta naturalmente deixados pelo processo da produção pictórica; as paredes angulosas e enviesadas de madeira pinus tratada, com seus nós aparentes; a treliça metálica aramada e serpenteada com rodízio vermelho; as portas e os janelões de vidro envoltos por uma vegetação majestosa; os pisos de mármore “verde-pantanal” ou desenhados por granilite colorido que se esparramam numa “galeria” dentro da própria casa-ateliê da artista, núcleo uterino dessas pinturas⁸. Nesse movimento que, a princípio, presumivelmente mediria forças entre “estampas” internas e“estampas” externas, pinturas coloridas num ambiente fartamente colorido e superfície estampada sobre superfície estampada, por assim dizer, ninguém sai perdendo.

Ao contrário, as pinturas de Luiza Gottschalk encharcam-se de forças também a partir daí, absorvem, arrebatam e eclodem um punhado de elementos que, como os ossos, a carne, o sangue e a pele, “[...] parecem confundir-se ainda com um casaco de arlequim”⁹. Nesse sentido, também fico tentado a tomar essas pinturas numa certa dimensão decorativa¹⁰, de um movimento que a um só tempo impregna, sorve, troca e devolve sem prejuízo para o ambiente os elementos e as cores que constituem ambos.

Durante os dezesseis dias que tive para escrever este texto, entre a ligação telefônica que recebi de Luiza Gottschalk na noite de 19 de fevereiro e a data da entrega, em 10 de março de 2025, a exposição e os trabalhos que a integram ainda não haviam sido nomeados. A artista me revelou o desejo de um desenho expográfico que seria feito em colaboração com o arquiteto Tito Ficarelli – seu marido, com quem ela vem estabelecendo parcerias e colaborações nos últimos treze anos –, mas que ainda se mostrava completamente aberto, não havia se definido, a despeito de a família de pinturas já estar pronta. Tais apontamentos apenas endossam a verdadeira crença da artista – e sua necessidade – na sensação nua, ou na lembrança dela, também fundada na sua dimensão intuitiva mais genuína, sem se render a protocolos externos a esse processo de criação, neste caso, a concepção de uma exposição e de tudo que ela envolve. Sustentando o espaço de suspensão da dúvida, isenta de caprichos e idiossincrasias, é como se Luiza Gottschalk falasse consigo mesma ao mesmo tempo que dissesse: “Fiquemos calmos, está ‘tudo’ aqui, na evidência física do que apresentam estas pinturas, em seu corpo mesmo; tais elementos pontuam o pensamento que ronda a primeira aparição pública – a exposição propriamente dita – dessa família de pinturas, ele apenas não apareceu ainda, mas aparecerá”.

Aqui, neste momento do texto, permito-me abrir espaço para dizer que conheci a artista Luiza Gottschalk quando ela ainda atuava como cenógrafa e atriz, e somente depois como pintora e também educadora¹¹. Tive a oportunidade de assistir a todo um repertório de espetáculos teatrais da companhia Os Satyros¹² —da qual Luiza Gottschalk fez parte durante anos, na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo —, a partir do qual pude também conferir cenografias feitas por Gottschalk, assim como apresentações emblemáticas encarnadas por ela como atriz e a partir da performatividade. Assisti, ainda, ao filme Hipóteses para o amor e a verdade¹³, no qual a artista vive uma prostituta e dá à luz, ao vivo, a sua primeira filha – Nina Gottschalk –, em uma das polêmicas cenas do longa, embaralhando os limites entre ficção e realidade.

Outrossim, devo dizer que estabeleci contato profissional com Luiza Gottschalk há quinze anos, na universidade, onde fui seu professor. Uma relação construída nas dimensões pedagógica, ética, estética e poética, marcada, sobretudo, pela confiança e pelo respeito recíprocos: onze anos atrás (2014), orientei seu Trabalho de Conclusão de Curso¹⁴ (naquele momento, denominado Trabalho de Intervenção Educacional) realizado na FAAP, em São Paulo, no âmbito da Licenciatura em Educação Artística, e intitulado com-juntos (com a grafia assim mesmo em caixa baixa, com as duas palavras separadas por hífen); também cheguei a orientar Luiza Gottschalk em um grupo livre de acompanhamento de projetos e trabalhos artísticos, chamado Agosto¹⁵, que mantive em meu ateliê entre 2014 e 2017, no qual desenvolvemos um projeto para residência artística relacionado à dança¹⁶, e que se encontra ainda em estatuto de projeto, enquanto germe, embrião, estado de projeção e potência; em 2018, também orientei seu trabalho de pós- graduação¹⁷ intitulado Movimentos I, II, III, realizado no âmbito do extinto Programa de Formação Continuada da FAAP.

Permiti-me fazer esse breve recuo no tempo porque acredito que, de algum modo, este texto, que acompanha CHMAC CHUÁ, e as ideias que o mobilizam e o animam já estavam internalizados em mim, muito antes das duas semanas que tive para escrevê-lo, e porque sei, ademais, que a lembrança da sensação, ou a sensação propriamente dita que tenho do trabalho de Luiza Gottschalk está no meu corpo há algum tempo. Daí o desafio prontamente aceito. Logo, nesses quase dois decênios acompanhando a prática da artista e sua postura inquieta, creio que, se posso dizer algo, é sobre a necessidade que ela tem de manter viva a referida sensação nua, alucinada, repisada, e que se revela no próprio corpo das pinturas de CHMAC CHUÁ. Eis a toda a verdade dessa práxis, desta mostra e da família que a habita.