[exposição individual]

Ensaio Aberto


São Paulo, 2019 | Praça das artes

entrevista por Ana Paula Cohen e Luiza Gottschalk

Entremeios

Ana Paula Cohen: A dança nessa exposição surge da busca por relacionar o seu trabalho de teatro e o de pintura. Onde você identifica essas relações?

Luiza Gottschalk: O trabalho que desenvolvi com a Companhia de teatro Os Satyros, ao longo de 10 anos, se relaciona com a ideia de performa - tividade. Não é um teatro representativo, que conta uma história de algo fora do tempo da apresentação. De forma semelhante, minhas pinturas não têm um referente externo, não são pensadas a partir de uma ima - gem, elas são o resultante do embate entre os corpos envolvidos.

APC: Talvez se você descrever o processo de realização das pinturas da sé - rie Montanhas que choram – apresentadas na exposição Ensaio aberto –, os corpos envolvidos nesse embate fiquem mais claros.

LG: Eu escolho um tecido com uma trama bem aberta, um tipo de linho, e o sobreponho a uma tela preparada para pintura. Pinto com uma tinta aguada, basicamente água, pigmento em pó e fixador. A água em contato com o tecido já encontra seus próprios caminhos.

APC: O linho absorve a água e vaza para a tela que está atrás.

LG: Sim, ele registra o percurso da água, por meio do pigmento. E esse registro é o que pinta a tela que fica por trás. Por isso digo que as pin - turas não representam algo externo, porque surgem desse encontro de corpos. Elas quase se pintam sozinhas, o tecido da frente acolhe um pri - meiro gesto meu, eu decido as cores, as áreas de fundo branco, as áreas de azul. Mas os caminhos da água já estão na pintura da frente, e por meio deles surge a pintura de trás. 1

APC: Talvez faça sentido lembrar que essa técnica surgiu de um “aci - dente”, de você descobrir que, para além da imagem da pintura, a parede do atelier sobre a qual você pintava absorvia alguns percursos da tinta, e revelava uma imagem semelhante à da pintura, mas diferente, sem con - torno, mais líquida.

LG: A tinta transborda, do tecido para a tela, da tela para a parede. Mas tem um pedaço desse tecido transparente que gruda na pintura de trás. E aí é que está a dança. São dois corpos, os dois tecidos, enquanto eles estão juntos, a água se movimenta, e esse movimento faz com que eles se tornem um só corpo. Quando eu os descolo, são duas pinturas, formadas pelo encontro dos corpos.

APC: A textura do tecido da frente também fica registrada na pintura de trás, tem algo do imprevisível, por mais que você tenha controle do pro - cesso.

LG: Não sei se imprevisível, acho que tem algo de improviso. O im - proviso, na dança, no teatro, na música, parte de uma pesquisa, não é aleatório, mas surge da ação no tempo presente. Por isso entendo que minha pintura pode ser dança. Dança e improviso. Ela existe como um resultado do momento do improviso e a partir de um reper - tório de movimentos dos corpos ali envolvidos.

APC: De fato, você criou uma técnica para que isso funcione sem deixar de registar o fluxo. São poucas as pinceladas que aparecem, muito da imagem se forma por meio desses movimentos da tinta, pelo escorrer e represar da água e do pigmento. Mas sempre há pelo menos uma figura nas pinturas, por isso acredito que não é só um registro do percurso das águas, tem algo mais ali que está sendo comunicado. As áreas mais densas de tinta formam figuras, que podem ser lidas como representação – uma águia, um cavalo –, mas que parecem materializar uma força que você capta durante o processo. Quase uma aparição, um acesso a outra materialidade, sensível e visível apenas por meio da pintura.

LG: Tem algo importante na figura, ela aparece mesmo em todas as mi - nhas pinturas. A figura funciona como um elemento de passagem, bem no meio do caminho entre o espectador e essa outra materialidade que só existe na pintura. Mas ela precisa estar nesse “entre mundos”, se fica muito identificável, não cria uma abertura para que o olhar atravesse. Por outro lado, se a figura estiver já sem forma nem contorno, não cria um primeiro apoio para o olhar.

APC: Como uma pedra num rio, que serve de apoio para caminharmos de um lado a outro. As figuras – cavalos, águias, araucárias, bebês –, parecem estar um pouco mais próximas do mundo da matéria densa, este que habita - mos, diferente do resto da pintura.

LG: Elas têm uma densidade muito precisa. É importante que permitam o fluxo. E é esse fluxo que me levou para a dança, esse movimento es - pecífico, dos fluxos de vida. Minha pintura se relaciona diretamente com o vivo, por isso ela é apresentação. A representação se relaciona com a morte, com algo que já foi, que não está na obra.

A dança me parece ser um meio onde esse fluxo de vida pode estar pre - sente o tempo todo. Há um movimento no ato de criação que nasce de um lugar que não é visível no corpo. O que o público vê, na dança, é já uma imagem, é o corpo dando forma a esse movimento.

Eu nunca tinha trabalhado de frente para um espelho, e no momento que me deparei com essa relação direta entre o movimento que nasce internamente e em como ele aparece, na imagem do espelho, eu entendi muito do que é minha pintura. O espelho é um campo bidimensional, e dançar em frente ao espelho me levou às pinturas dessa exposição. A pintura que surge é uma ima - gem resultante do movimento entre o linho, de tramas abertas, e a tela preparada. A dança acontece entre os dois corpos e o espelhamento das imagens se aproxima da relação entre o corpo que dança a partir de um movimento interno e a imagem desse corpo vista no espelho. Essas pinturas vêm da mesma imagem e do mesmo movimento, mas não são idênticas.

1 No caso das obras em exposição, a pintura maior ("Montanhas que choram"), de 5,50 por 13 metros, vista como uma cortina na parede da exposição, é o tecido que, no processo de realização, está sobreposto à tela. As pinturas "Cachoeira", "Chuva", "Encharcada", "Lodo" e "Rio", montadas no chassis e esticadas, são fragmentos da tela que estava por trás do tecido. (ver “Lista de obras em exposição”)